Dons com Propósito

“Segui o amor e procurai, com zelo, os dons espirituais…” 1 Coríntios 14:1

 

A graça de Deus opera nossa salvação de forma completa: muda nossa vida, nos justifica, nos converte, nos coloca no caminho ascendente da santificação e nos capacita com dons espirituais para sermos úteis aos propósitos de Deus no corpo de Cristo. No Céu, um registro é feito ao lado de nosso nome indicando que fomos justificados e então somos inseridos no livro da vida do Cordeiro. Na Terra, outro registro e feito ao ser o nosso nome inserido no livro da igreja. A capacitação para o céu se inicia mediante o processo da santificação e a capacitação para assumirmos nosso lugar no corpo de Cristo começa com a concessão dos dons espirituais. Portanto, capacitação é também um milagre da graça de Deus em nosso benefício.

O propósito de Deus para sua vida.

Sempre ouvimos que Deus tem um plano para cada um de nós: “Deus tem um plano para sua vida”, dizem os mais experientes aos mais novos na fé. Você já ouviu isso? Essa frase sempre me intrigou porque as pessoas nunca me diziam que plano seria esse.

Depois de um tempo passamos a ouvir algo ainda mais intrigante: “Deus tem uma programação diária para sua vida”. Esse é um dos cinco princípios da administração eficaz da vida apresentados nos seminários de enriquecimento espiritual. Além de sabermos que Ele tem um plano para nossa vida, agora sabemos que esse plano envolve uma programação diária!

Diante dessa realidade algumas questões relevantes saltam à nossa frente: você sabe qual o plano de Deus para sua vida? Sua vida está organizada segundo este plano? Você está atuando hoje em harmonia com este plano? O estudo dos dons espirituais no contexto da graça de Deus apresentado em Romanos 12 nos ajudará na elaboração da resposta a esta questão.

A Relevância do Tema dos Dons Espirituais

Muita coisa já foi escrita acerca dos dons espirituais e é presumível que assim seja por se tratar de um tema tão relevante e complexo. As Escrituras dão ao tema um espaço privilegiado confirmando a sua importância para a igreja ao longo dos séculos. A máxima do apóstolo Paulo é um desafio à busca de conhecimento cabal e de uma experiência efetiva com os dons espirituais; uma rota de fuga da ignorância, que todo cristão deveria palmilhar: “a respeito dos dons espirituais [pneumatikwn], não quero, irmãos, que sejais ignorantes” (1Co 12:1).

Precisamos concordar com Christian Schwartz quando diz:

Grande parte das dificuldades que temos nas igrejas com os ministérios orientados pelos dons decorre simplesmente da falta de informação por parte da maioria dos cristãos, sobre esse princípio maravilhoso de Deus.¹

Um Grande Tema no Livro de Romanos

Um estudo atencioso do capítulo doze da epístola de Paulo aos Romanos nos revelará muito sobre os planos de Deus para dar propósito à vida dos seres resgatados do pecado.

Veremos que a graça que salva do pecado também capacita para o ministério e estabelece no corpo de Cristo um harmonioso ambiente de convivência em meio à diversidade dos dons espirituais distribuídos entre os membros. O texto inicia com a revelação de um significativo pedido de Deus: a entrega da vida como um “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus…” (Rm 12:1,2).

Que pedido grandioso, dirigido a seres humanos tão limitados! A questão desafiadora é: Como apresentar nossa vida de tal forma, a ponto de agradar a Deus?

O capítulo doze apresenta seu tema por meio de três abordagens: nos versos um e dois, é feito um apelo à entrega e ao culto racional; nos seis próximos, ele discorre acerca da diversidade da comunidade e da atuação dos dons espirituais na vida dos crentes e nos versos de nove a vinte e um, as normas gerais para a vida cristã são apresentadas.

O Deus que desafia é o Deus que capacita. Ele quer que: “apresenteis os vossos corpos como sacrifício vivo, santo a agradável a Deus que é o vosso culto racional”!

O conceito de um sacrifício vivo pode parecer contraditório já que as ofertas de animais eram oferecidas mediante a morte deles. Mas trata-se agora do sacrifício de seres humanos e esta entrega se refere à dedicação da vida, das aflições, dos planos, projetos e valores pessoais.

O apóstolo tenta conduzir seus leitores para a compreensão de que a entrega da própria vida se constitui no sacrifício, já que tal entrega demandaria renúncia e negação de si mesmo. Este sacrifício além de “vivo” precisa ser “santo e agradável a Deus”.

Tal panorama confirma a realidade de que somente uma vida santa pode agradar a Deus.

Aqui há um chamado para cada um de nós, e não podemos fugir dele. Antes de tudo um chamado à santidade, pois Deus realmente espera que todos os Seus filhos vivam dessa maneira: uma vida, em santidade, em harmonia com Sua vontade (Lv 11:45; Lc 1:74,75; 2Co 7:1; Hb 12:14; 1Pe 1:16; 2Pe 3:11).

A não conformidade com este presente século ou era já sinaliza que um processo de transformação está a ocorrer pois o natural seria que o homem caído vivesse em conformidade com o mundo caído. A inconformidade então, é um passo “para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12:2) e o que seja o culto racional, tarefa impossível para qualquer ser humano caso Deus mesmo não nos capacitasse para tal nível de entrega e novidade de vida.

A resposta para esta capacitação está nos versos seguintes deste capítulo onde a graça χαριτοσ [charitos] de Deus é apresentada como fonte e veículo para Suas dádivas reveladas nos dons espirituais.

Com base nessa graça e em nossa dependência dela, o apóstolo apela para que não haja um espírito de arrogância de nossa parte, mas moderação no conceito próprio “conforme a medida da fé que Deus repartiu a cada um” (12:3).

O corpo humano com seus membros é apresentado como figura de linguagem e analogia em referência à interdependência orgânica do corpo místico de Cristo, a igreja.

Esta interdependência é vivenciada no contexto da multiplicidade dos membros do corpo, das múltiplas funções dos tais membros (12:4) e de seus múltiplos dons. Ao mesmo tempo em que a atenção do leitor é atraída para um cenário de diversidade também o é para um panorama de unidade. Nas palavras de Paulo “nós, conquanto muitos, somos um só corpo em Cristo, e membros uns dos outros” (12:5).

Em Romanos 12:6 existem duas palavras-chave que nos ajudarão a compreender melhor o tema exposto no capitulo: “tendo, porém, diferentes dons segundo a graça que nos foi dada: se profecia, seja segundo a proporção da fé”. Nessa passagem dons é a palavra grega [charismata] χαρισματα e graça [charis] χαρισ. O termo charismata é um substantivo acusativo, plural e comum, cuja forma singular é carisma. Significa que os dons espirituais são expressões da graça doadora de Deus que confere aos homens Seus mais diversos dons.

Os dons espirituais χαρισματα [carismata] aparecem aqui (12:6) como uma das formas de manifestação da graça charis de Deus aos seus filhos amados, e mediante estes dons espirituais a diversidade funcional dos membros do corpo é evidenciada. “Temos diferentes dons segundo a graça que nos é dada”.1

O2 principal assunto da epístola é o plano da salvação que se desdobra na justificação pela graça mediante a fé (Rm 3:24; 4:22,25; 5:1,9; 6:4,5), um tema frequente nas epístolas de Paulo (1Co 6:11; Gl 2:16,17; Fp 2:9-11; Tt 3:7). O apóstolo apresenta o tema do pecado na vida do homem e suas funestas consequências, almejando o duplo resultado descrito por Calvino:

“Convence-o de sua impiedade; e, em seguida, o desperta de sua indolência”.²

Por conseguinte, Calvino também diz que Paulo procura nos ajudar ao despojar a humanidade da confiança em sua própria virtude, e de glorificar-se em sua própria justiça.

Ele ainda nos apresenta a realidade do juízo divino, então retorna à sua proposição anterior, ou seja: somos justificados pela graça mediante fé. Em seguida Paulo explica o que fé significa e como podemos alcançar a justiça de Cristo mediante a tal fé.³

A única chance do pecador encontrar esperança de salvação é mediante a oferta de Jesus Cristo como nosso suficiente redentor. Somente nEle esta esperança se fundamenta, pois nada que o homem possa fazer por si mesmo é capaz de saldar sua dívida para com os reclamos da justiça divina.

“Por meio de Seu sofrimento e morte substitutiva, Jesus Cristo tornou-se o Senhor, justiça nossa (Jr 23:6). Portanto nossa salvação já não é mais expressa nas formas de culto da antiga lei cerimonial e a prefiguração do sangue do sacrifício (ver Hb 10:1,5-10), mas no oferecimento de ‘sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo’ (I Pe 2:5 up.); um ‘sacrifício de louvor, isto é, o fruto dos lábios que confessam o Seu nome’ (Hb 13:15). O apóstolo Paulo faz um resumo dizendo: ‘A saber: Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo’ (Rm 10:9)” ⁴.

A Diversidade em Comunidade

O autor de Romanos argumenta acerca do modo adequado do viver cristão, e nesse contexto ele apresenta o tema da comunidade dos cristãos que estão sob a liderança da cabeça que é Cristo. Esta vida em comum demanda a compreensão da interdependência orgânica dos crentes e sua atuação como parte do corpo de Cristo.

O apóstolo recomenda moderação na avaliação da própria sabedoria (12:3). Ele solicita a cada um que “não saiba mais do que convém saber”.

Assim como os membros do corpo são distintos, seus dons também o são.

Cada um, tendo a sua porção tanto de capacidade quanto de responsabilidade, deve exercer sua função sem colidir com o outro.

Como ninguém é o todo ou tenha todas as habilidades ou capacitações, cada um contribui significativamente para a formação do todo. Nessa realidade há uma clara noção de interdependência orgânica.

O versículo quatro ressalta a verdade que da mesma forma que ninguém tem todas as competências, pessoa alguma pode acariciar o desejo de ocupar todas as funções.

Cada um deve buscar conter o ímpeto efêmero de ocupar o lugar ou as funções do outro.

Cada um tem uma contribuição a dar na formação do valor corporativo da igreja. As potencialidades dos outros devem ser valorizadas, pois elas contribuem igualmente para a completa definição da coletividade.

Somente a compreensão da dependência que cada um tem do outro faz do indivíduo parte de um todo. Quando os crentes compreendem que são “membros uns dos outros” (Rm 12:5) iniciam o processo da relação dinâmica que deve haver entre as partes de um organismo único e pluralista ao mesmo tempo, como somente o corpo humano e a igreja podem demonstrar. Assim, os que são muitos, são “um só corpo”, o que indica que a individualidade favorece à comunidade.

Tudo isso tem um contexto relativo ao processo de transformação da individualidade das pessoas na comunidade da igreja: A regência da Divindade. Deus Pai, quem repartiu a medida da fé a cada um, Jesus Cristo em quem o corpo se orienta por ser O cabeça e o Espírito Santo o regente da distribuição dos dons que habilitam os membros desse corpo a cumprirem cabalmente suas funções.

“É inspirador saber que a Trindade está empenhada em alcançar as diversas mentes deste mundo. Também entusiasma saber que, para sua estratégia mundial, leva em conta todos os dons de cada igreja e sua implementação por meio de uma diversidade de ministérios que trabalham de muitas maneiras distintas”⁵.

Numa sinopse de Romanos 12:1-6, relacionada com a distribuição dos dons, a diversidade e a unidade aparecem entrelaçadas:

  1. A medida da fé que Deus repartiu a cada um… (12:3);

  2. Um só corpo… muitos membros (12:4);

  3. Diversidade de funções (12:4);

  4. Somos muitos… somos um só corpo (12:5);

  5. Somos membros uns dos outros. (12:5);

  6. Temos diferentes dons (12:6);

  7. A graça é dada a todos nós (12:6).

Em meio a um ambiente de grande diversidade, as pessoas que formam o corpo de Cristo devem ter em mente a sua completa dependência de Deus e sua interdependência com os outros única maneira de ser preservada a unidade orgânica desse corpo místico, a igreja. Todos devem atuar dentro de seus limites para que a harmonia seja preservada. Daí a importância de um programa sistemático de identificação dos dons em funcionamento dentro da igreja.

Uma vez que os dons são identificados, as funções de cada um são definidas, seu campo de atuação é descrito e o risco de “invasões” é minimizado.

Como orienta o texto “somos membros uns dos outros” (12:5), mas “nem todos os membros têm a mesma função” (12:4). Assim, cada um deve encontrar o seu espaço e atuar nele de forma ética em relação ao espaço dos outros e buscando a excelência que merece o corpo de Cristo: “Se profecia, seja segundo proporção da fé;” (12:6) seja:

  • “Se ministério (serviço), dediquemo-nos ao ministério;” (12:7)

  • “O que ensina, esmere-se no fazê-lo;” (12:7)

  • “O que exorta, faça-o com dedicação;” (12:8)

  • “O que contribui, faça-o com liberalidade;” (12:8)

  • “O que preside, com diligencia;” (12:8)

  • “O que exerce misericórdia, com alegria.” (12:8)

Temos aqui, portanto, o principal propósito que o apóstolo tinha em vista, ou seja:

Nem todas as coisas são adequadas a todos os homens; por isso os dons divinos são tão bem distribuídos, que cada um recebe uma porção limitada. Cada indivíduo deve viver tão satisfeito com a apropriação de seus dons pessoais, visando a edificação da Igreja, que ninguém precisa negligenciar sua própria função a fim de invadir uma área pertencente a outrem. A segurança da igreja é preservada por meio desta mui excelente ordem e simetria, quando cada indivíduo de per si contribui para o bem comum, daquilo que recebeu do Senhor, sem, ao mesmo tempo, impedir a outrem de fazer o mesmo. Inverter esta ordem é declarar guerra contra Deus mesmo, por cuja ordenação foi ela designada. A diferença de dons não em sua origem na vontade humana, mas porque foi do agrado do Senhor ministrar Sua graça desta maneira.⁶

 


Referências

  1. Christian A. Schwarz, O Teste dos Dons (Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1999), 30.

  2. João Calvino, Romanos (São Paulo, SP: Edições Parakletos, 2001), 24.

  3. Idem, 25.

  4. Hans K. Larondele, Doutrina da Salvação (Brasília: SALT, 1982), 15.

  5. Isabel e Daniel Rode, Crescimento: Chaves Para Revolucionar Sua Igreja (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2007), 27.

  6. João Calvino, 442

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