Dons sob a Ótica de Paulo e Pedro

“Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu…” 1 Pedro 4:10

A Ênfase de Paulo aos Coríntios: Dons da Graça

O enfoque dado pelo apóstolo à necessidade de se obter o devido conhecimento e experiência com o tema dos dons espirituais fica evidente em dois aspectos:

(a) O conteúdo contundente de suas recomendações do tipo: “procurai com zelo os melhores dons carismata [charismata]” (1Co 12:31); “A respeito dos dons espirituais não quero, irmãos, que sejais ignorantes” (1Co 12:1), além de: “segui o amor e procurai com zelo os dons espirituais πνευματικά [pneumatika]” (1Co 14:1); embora aqui como em 1Co 12:1 a palavra dom seja provida pelo contexto de um capítulo clássico sobre dons espirituais atuando no corpo de Cristo (1Co 12:4,8-11).

(b) A pluralidade dos termos gregos relacionados aos dons. Uma busca dos textos onde o vocábulo dom aparece explicitamente revela que há uma pluralidade de termos, o que sugere a riqueza do conceito bíblico dos dons espirituais, em seus variados matizes contextuais. Em Romanos 11:29 a palavra grega traduzida por dons é carismata [charismata], um substantivo nominativo, neutro¹ tendo o sentido genérico de dom ou favor, dádiva, presente, algo oferecido gratuitamente.

Palavras que se formam da raiz Gr. char indicam coisas que produzem bem estar.

[…] Derivam deste significado básico do substantivo os significados individuais de charis: “graça”, “favor”, “beleza”, “gratidão”, “agradecimento”, “deleite’, “bondade”, expressões de “favor”, “serviço prestado”, “benefício”.

[…] O NT emprega o termo charis 155 vezes, mormente nas epístolas de Paulo (100 vezes), especialmente em 1 e 2 Coríntios (10 e 18 vezes, Romanos (24 vezes), e Efésios (12 vezes). […] Para Paulo, charis é a essência do ato salvífico de Deus mediante Jesus Cristo que ocorreu na morte sacrifical dEste, como também de todas as suas consequências no presente e no futuro. ⁴

Dádivas da graça para o serviço. A palavra grega charis “graça é, antes de tudo, o dom de Deus, ou seja, o dom que Deus faz gratuitamente ao homem…” é o favor de Deus que se revela na forma de “benevolência, ajuda, carisma, perdão, inclusão no povo de Deus e participação da vida eterna (Ex 34:6,7; Lc 1:28; Jó 1:17; 1Pe 4:10; Rm 5:17, 20, 21; 11:29).”⁶

Em 1Co 12:9 o vocábulo [Charismata] é usado com explícito significado de dotação ou capacitação: “… e a outro, no mesmo Espírito, dons de curar”. Charismata aparece também em 1Co 12:28, 30, 31 sendo que neste último há uma recomendação para os cristãos buscarem “com zelo os melhores dons”. Ambas as palavras, portanto, provém da mesma raiz – car [char].

Neste contexto fica clara a verdade de que é pela graça de Deus que os dons espirituais são oferecidos aos homens, eles são manifestações da graça de Deus em nos tirar da inutilidade mediante um processo de capacitação para nos tornar úteis e relevantes onde Ele nos colocou no corpo de Cristo. A graça de Deus em nosso favor é algo imerecido e os dons espirituais são manifestações desta graça em nossa vida. A mesma graça que salva é a graça que capacita as pessoas para o serviço e para a utilidade no ministério, já que a graça que salva do pecado também salva da inutilidade do ponto de vista dos interesses do reino de Deus.

Os dons Espirituais são dados a cada cristão visando um bem proveitoso, a edificação do corpo de Cristo. “A igreja deve sua unidade à charis (graça) e sua diversidade aos charismata (dons da graça).”⁷ Como todo homem, nascido em pecado, carece da graça de Deus (Rm 6:23), graça e dom espiritual interagem harmoniosamente no combate dos efeitos do pecado na vida daqueles que aceitam a Cristo como Salvador. Não há aqui nenhuma condição de estabelecer-se uma relação entre a graça, os dons e o merecimento da parte de quem recebe estas benevolências divinas, ⁸

Isso nos ajuda a entender o conceito dos “dons da graça” qualidades e potencialidades atribuídas aos crentes pelo Espírito Santo para o serviço da igreja.

“A idéia básica da palavra é a de um dom gratuito e imerecido, alguma coisa dada ao homem sem trabalho nem merecimento, algo que vem da graça de Deus e que nunca poderia ter sido realizado, galgado ou possuído pelo esforço do próprio homem.”⁹

É pela graça que somos salvos… isso todos nós sabemos. O que talvez não saibamos é que essa graça que nos salva da perdição do pecado é a mesma que nos salva também da inutilidade, da inatividade e da irrelevância. A graça de Deus atua no indivíduo de forma integral. Redime-o do pecado transforma sua vida e lhe garante a entrada no reino celestial, por ocasião da volta de Jesus, mas também o capacita para viver uma vida significativa, mediante a dotação dos dons espirituais. Estes dons (charismata) da graça (charis) são oferecidos ao pecador arrependido que abre as comportas da vida para receber a salvação em Jesus. Assim, “todos os tais dons espirituais são presentes de graça dados de acordo com a vontade e propósito de Deus.”¹⁰

O tema da graça de Deus é visto nas Escrituras de vários ângulos: Graça como ajuda divina e permissão (Ef 4:29); graça como salvação benevolente de Deus em Cristo (At 11:23). Graça em saudações e bênçãos (1Co 1:3); Graça como dom especial para o ministério. Este último é o enfoque do nosso estudo. Tanto charis como charisma são usados no Novo Testamento como se referindo à extraordinária capacitação para o ministério. Mesmo tendo charisma o significado de “dom” na literatura Helenística, autores do Novo Testamento podem ter usado o termo dons espirituais com a conscienciosa alusão à graça de Deus em Cristo.¹¹

Como vimos, a palavra grega charisma provém da mesma raiz de charis e ambas têm o sentido de gratuidade no contexto eclesial.

Charisma significa basicamente ‘um dom’. Não é uma palavra comum fora do N.T. […] no N.T. é uma palavra caracteristicamente paulina. Ao todo ocorre dezessete vezes, catorze vezes nas cartas indubitavelmente paulinas, duas vezes nas Epístolas Pastorais, e uma vez em 1 Pedro. […] É usada para aquilo que podemos chamar de ‘dádivas da graça’¹².

Na primeira carta a Timóteo (1Tm 4:14) o apóstolo Paulo inclui em suas recomendações pastorais: “Não te faças negligente para com o dom – carismatos [charismatos] – que há em ti, o qual te foi concedido mediante profecia, com a imposição das mãos do presbítero”. Em ambas as passagens o vocábulo grego origina-se da raiz car [char] da qual vêm os verbos caritzomai [charitzomai] “dar ou ceder livremente como um favor”¹³ ou “fazer algo gracioso para alguém, ser bondoso, ser gracioso, ser prestativo, favorecer ou gratificar alguém”¹⁴ e carisma [charisma] “um dom (algo dado livre e graciosamente), um favor”¹⁵, no sentido de doação ou dádiva graciosa.

A palavra carísmata, plural de carisma, acha-se somente nos escritos de Paulo, a não ser uma vez em 1 Pedro. Uma definição precisa seria “manifestações da graça”, que traduzido é “dons”. Em Efésios 4 Paulo usa duas outras palavras traduzidas por “dons” ou “dádivas”, dorea e doma. São semelhantes a carísmata e ainda há uma quarta palavra para “dons”, pneumática, que significa “as coisas do Espírito”.¹⁶

O Apoio de Pedro

O apóstolo Pedro reforça essa ideia ao fazer uso idêntico de palavras da mesma raiz para descrever tanto os dons recebidos como a graça salvadora (1Pe 4:10). Neste texto, encontramos o apóstolo recomendando os dons como sendo a base capacitadora para o serviço mútuo entre os cristãos e propondo que haja por parte de cada um o reconhecimento da origem dos dons na ação graciosa de Deus em nos confiá-los. Ele diz: “Servi uns aos outros, cada um conforme o dom [charismaton] que recebeu, como bons despenseiros da multiforme graça [charis] de Deus.”

Neste texto de Pedro, carisma é um substantivo acusativo neutro, singular; denotando o que foi determinado, um dom; (1) como o resultado, de um gracioso ato de Deus, um dom da graça, um favor conferido, benefício, com seu significado variando de acordo com contexto: privilégios concedidos (Rm 11.29), salvo do perigo (2Co 1.11), o presente de redenção (Rm 5.15f); (2) como uma concreta manifestação de graça na forma de poderes extraordinários dados a indivíduos, dons especiais, habilidades (Rm 12.6); a habilidade para ser alto-contido em assuntos de sexo (1Co. 7.7); o favor de uma habilidade especial determinado por ordenação que Deus deu (1Tm 4.14; 1Pe 4.10).

Fora das epístolas paulinas este termo é usado só uma vez dentro do NT, isto é, 1 Pe 4.10, onde é-lhe dado o sentido de ‘dom especial’, i.e.,um dom da graça divina. […] o ‘dom gratuito’ ou o ‘dom pela graça divina’ (5.15-16), é a economia da graça divina pela qual o perdão do pecado e a salvação eterna são oferecidos aos pecadores através dos méritos de Cristo apropriados pela fé (cf. 6.23); fonte de muitas bênçãos da salvação cristã (11.29). ¹⁷

Retornando para Paulo. Em Efésios 4.8 a palavra que o apóstolo Paulo usa no contexto dos dons espirituais é domata [dómata], sendo um substantivo acusativo neutro, tem o sentido de presente oferecido com graciosidade (Mt 7:11; Lc 11:13; Fp 4:17). Provavelmente o apóstolo fez a preferência por este vocábulo aqui, pois numa passagem bem próxima já tinha feito uso de cariti [chariti] da raiz car, numa relação antitética entre “mortos em nossos delitos e pecados” e “pela graça sois salvos” (Ef 2:5). Nos versos 8 e 9 também aparece o uso de cariti [chariti] num contexto antitético trazendo o sentido da raís grega car [char] como graça salvadora de Deus, um presente imerecido, uma dádiva motivada pela pré-disposição salvívica de Deus.

Ainda em Efésios é notório o uso que Paulo faz de dois vocábulos traduzidos respectivamente por graça e dom para apresentar, no mesmo versículo, a proximidade de duas idéias correlatas. Isso acontece em Ef 2:8; 3:7 e 4:7. No primeiro texto: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus”, a graça cariti [chariti] pela qual somos salvos é dom δωρον [duron] de Deus. Em diversas outras passagens relacionadas com o tema dos dons espirituais (Rm 11:29; 1Co 12:4, 9, 31; 1Tm 4:14; 2Tm 1:6), palavras derivadas da raiz grega car são traduzidas por dom ou dons e não graça como aqui onde, para dom, foi usado o termo dwron [dwron].

Em Efésios 3:7 encontramos a frase grega: dwrea.n th/z ca,ritos tou/Qeou/ para “dom da graça de Deus”. Novamente no encontro destes dois vocábulos o apóstolo usou para designar dom dwrea.n, [durean] que significa doar, presentear, oferecer, gratificar, e usou ca,ritos para transmitir a idéia da graça de Deus. O mesmo acontece em Efésios 4:7.

Acerca do compromisso que temos com aqueles que não receberam ainda a graça de Deus, Ellen White escreve:

Por tudo quanto tendes aprendido acerca do amor de Deus, por tudo quanto tendes recebido dos ricos dons de Sua graça acima da mais entenebrecida e degradada alma da Terra, sois devedores para com essa alma no sentido de lhe comunicar esses dons.¹⁸

Em Hebreus 5:1 [dora], é um substantivo acusativo e tem o sentido de presente, dádiva ou oferta; como no caso dos magos do oriente que ofereceram presentes para Jesus recém nascido (Mt 2:11). Esta palavra também aparece descrevendo a dádiva de ofertas para a manutenção do templo (Lc 21:1); como uma oferta oferecida a Deus (Mt 8:40); como se referindo à salvação como um presente de Deus (Ef 2:8).¹⁹

Os dons são diferentes. Os dons foram distribuídos pelo Espírito individualmente e em grande diversidade para atender a seus propósitos, assim a grandeza da graça de Deus se revela também na variedade dos dons que Ele distribuiu “de acordo com a graça que lhe foi oferecida, Paulo foi apontado para ser um apóstolo. De acordo com a graça lhes oferecida, outros cristãos foram designados para serem profetas, professores”²⁰, etc. Pela graça de Deus os membros da igreja são dotados de uma grande variedade de dons espirituais que os capacitam a suprirem as diversas necessidades dos crentes e para apresentar o evangelho da salvação a toda nação, tribo, língua e povo (Ap 14:6).

A essência da palavra charisma pode ser melhor compreendida com base no contraste apresentado em Romanos 6.23. Em “o salário do pecado é a morte”, a palavra usada para salário é ofwnia [opsônia], que significa literalmente ‘dinheiro para comprar carne cozida’ e é a palavra regular para ‘o pagamento do soldado’. Isso quer dizer que se recebêssemos o pagamento por aquilo que fizemos, teríamos recebido a morte. O ‘dom gratuito’ de Deus é a vida eterna. A palavra charisma. Ora, charisma também é uma palavra militar. Quando um imperador subia ao trono, ou quando celebrava o seu aniversário, dava às suas tropas um donativum ou charisma, que era uma livre oferta em dinheiro, um presente. Não o obtiveram em troca de serviços, conforme era o caso de sua opsônia; receberam-no imerecidamente pela generosidade do imperador.

Assim, tudo quanto merecemos, nossa opsônia, seria a morte. Tudo quanto possuímos é o charisma, o dom gratuito de Deus. Tudo vem de Deus. Cada graça que adorna a vida, a graça que cobre todos os pecados, cada dote natural que possuímos, cada dom que podemos usar no serviço da igreja, qualquer cargo que porventura detemos – Deus o deu, Deus o fez, é charismata de Deus, tudo é de Deus²¹


A fonte usada nas palavras gregas é: Bwgrkl.

  1. F. W. Gingrich e Frederick W. Danker, Léxico do Novo Testamento Grego Português (São Paulo, SP: S.R. Edições Vida Nova, 1984), 169, 170.

  2. Bárbara Friberg e Timothy Friberg, O Novo Testamento Grego Analítico, 499.

  3. Colin Brown, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 1989), 316-324.

  4. Cassiano Floristan Sanmanes, Juan-Jose Tamayo-Acosta, Dicionario de Conceitos Fundamentais do Cristianismo (Sao Paulo, SP: Paullus, 1999), 323.

  5. Thomas Parra Sanches, Dicionário da Bíblia (Aparecida, SP: Editora Santuário, 1997), 87.

  6. John Stott, Batismo e Plenitude do Espírito Santo (São Paulo, SP: Editora Vida Nova, 1988), 80.

  7. Donald Gee, A Respeito dos Dons Espirituais (São Paulo, SP: Editora Vida, 1995), 96.

  8. William Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, (São Paulo, SP: Ed. Vida Nova, 1985), 40.

  9. Francis D. Nichol, The Seventh-Day Adventist Bible Commentary (Washington, D.C.: Review and Herald Publishing Association), vol. 6, p. 618.

  10. David Noel Freedman, The Anchor Bible Dictionary (New York, N.Y.: Doubleday, 1992), v. 2, p. 1088.

  11. F. W. Gingrich e Frederick W. Danker, 222.

  12. Barclay, 39, 40.

  13. F. W. Gingrich e Frederick W. Danker, 222.

  14. Colin Brown, 317.

  15. F. W. Gingrich e Frederick W. Danker, 222.

  16. Billy Graham, O Espírito Santo (São Paulo, SP: Edições Vida Nova, 1992), 34.

  17. Marrill F. Unger, Moody Pressm, The New Unger’s Bible Dictionary (Chicago, USA: 1988), 113.

  18. Ellen G. White, O Maior Discurso de Cristo (Tatuí SP: Casa Publicadora Brasileira, 2008), 135.

  19. F. W. Gingrich e Frederick W. Danker, 60 e CD-Rom Bible Works, notas de referência a: Hb 8:3,4; 9:9; 11:4.

  20. Comentário Bíblico Adventista, v.5, p. 618.

  21. Barclay, 40, 41.

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